Em 2009, ao identificar a carência de materiais em formato de revista para formadores de alfabetizadores, fui a Belo Horizonte propor à professora Magda Becker Soares, a quem já havia entrevistado algumas vezes, que coordenasse dois números especiais sobre o tema para a revista Educação.
Depois de uma reunião de uma hora e meia com docentes do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, órgão criado por ela, havíamos discutido, desenhado, dividido em capítulos e listado autores para os dois números. Magda, então, foi a voz que enfatizou a importância da parceria entre Ceale, que faria 25 anos em 2010, e Editora Segmento. Depois disso, passou a bola para as professoras Aparecida Paiva e Sara Mourão darem continuidade ao projeto por parte do Ceale.
Ela própria, ainda que tenha participado com um artigo, estava com a mente voltada a um projeto que iria ocupá-la a partir de 2011: a escrita de um livro que mergulhasse em toda sua trajetória intelectual relativa ao entendimento da faceta linguística na inserção do mundo da escrita. Traduza-se por isso o processo de alfabetização, objeto de aprendizagem a que dedicou a vida, desde antes de formar-se em letras neolatinas pela mesma UFMG, em 1954.
Ainda que sua visão sobre a entrada no mundo letrado seja bem mais ampla do que a questão específica da alfabetização – Magda é a introdutora no Brasil do conceito de literacy, o letramento – o tema, em razão do renitente insucesso da educação pública brasileira, remanesceu quase como que uma obsessão para ela.
Por intuir que era muito mais complexo do que a forma como era tratado na formação de professores, em especial na pedagogia, continuou a tentar desvendar suas diversas nuances. Para escrever o livro, batizado de Alfabetização – A questão dos Métodos (Editora Contexto), mergulhou no talvez mais rico conjunto de referências de pesquisa, percorrendo todas as áreas nele envolvidas, dando atenção ao objeto e ao sujeito da aprendizagem, como enfatiza. Mas ainda deixando em aberto as outras duas facetas relativas ao mundo letrado, a interativa e a sociocultural.
Quem sabe, objeto de uma nova obra com a assinatura desta intelectual cuja marca principal parece ser a generosidade. E que continua mais ativa do que nunca aos 84 anos. Numa tarde agradável no início de agosto, ela nos recebeu em sua casa, em Belo Horizonte.
Como nasceu sua preocupação com a questão da alfabetização?
Durante toda a educação básica – primário, ginásio e científico (queria ir para a área de ciências exatas), estudei em escola privada, protestante, metodista. Depois fiz curso de letras e fui dar aula em escola pública, para o ginásio. Levei um susto terrível. Senti na pele a distância que havia entre a escola em que eu tinha estudado e onde dava aulas agora, a diferença de condições, professores, sobretudo de relação dos professores com os alunos. Esse momento representou um rito de passagem na minha vida. Daí em diante, passei a vida por conta da escola pública.
Deixei o ensino básico e fui para a universidade, com dedicação exclusiva, o que às vezes é mais um malefício do que um benefício para quem está formando professores. Você forma professores para uma escola da qual está distante, que conhece só pela pesquisa. Mas fiz e orientei pesquisas sobre a língua, sobre problemas de linguagem na escola pública. E fui me convencendo cada vez mais que a questão era o começo da história, a fase de entrada da criança no que podemos chamar de cultura da escrita. E acabei me voltando para essa área inicial.
Quando foi isso?
Comecei a dar aulas um ano antes de me formar, em 1953, dava aulas para ginásio ou em formação de professoras do curso normal. Só fui entrar na universidade em 1960. Fiquei até me aposentar, na véspera de fazer 70 anos. A moça da secretaria me disse que eu já poderia ter me aposentado dez anos antes. Eu disse: “quem falou que eu queria?”.
Nesse período todo, fiquei preocupada com a questão da aprendizagem da língua escrita pelas crianças. Inicialmente, trabalhava só com o curso de letras, depois quis trabalhar também com pedagogia, na disciplina de alfabetização, que conseguimos introduzir. Antes dela, havia na pedagogia uma metodologia da língua portuguesa, um semestre só. Assim, ficamos mais perto de quem ia para a sala de aula na escola pública. Aí veio um interesse grande em alfabetização. Esse livro de agora é resultado disso.
Como sempre fui muito obsessiva por leitura, por estudar, estava sempre a par do que se produzia aqui e no exterior. Ao mesmo tempo, acompanhava o fracasso na alfabetização neste país, que é algo que não se vence nunca.Comecei a ficar impressionada.
É consenso que o professor de qualquer disciplina tem de saber o conteúdo para poder ensiná-lo. Tem de saber história para ensinar história, tem de saber geografia para ensinar geografia, ciências para ensinar ciências. Para alfabetizar, é como se não houvesse algo que se tem de saber. É como se a pessoa, sabendo ler e escrever, soubesse automaticamente alfabetizar. O que não faz sentido.
Na minha visão de linguista, pensava que a língua escrita é um sistema de representação extremamente complexo e que demanda de uma criança de 5, 6, 7, 8 anos habilidades cognitivas muito complexas também, pois trata do entendimento de um sistema de representação bastante abstrato. É preciso representar os sons com sinaizinhos na página, os chamados grafemas, sinais que são também arbitrários. Por que um desenho de B vai representar o fonema |B|? Ou seja, o objeto em si é complicado. E, portanto, as habilidades cognitivas que a criança precisa para compreender e dominar esse sistema são também complexas e dependem do processo de desenvolvimento dela.
E o preparo para isso…
No próprio curso de pedagogia, ninguém acha importante discutir essas coisas com quem vai alfabetizar. É algo que me tomou anos. Há muita leitura nesse livro, tudo para que eu pudesse entender bem o processo de aprendizado da língua escrita dos pontos de vista da psicologia cognitiva, da linguística, da sociolinguística, enfim, de várias áreas de conhecimento.
E depois tem o fato de os psicólogos do desenvolvimento terem começado a se preocupar com isso há pouco tempo, como os linguistas que começaram nos anos 70, outro dia mesmo. Cada um analisando seu pedaço, daí o nome das facetas. Porque você aprende a codificar e decodificar a língua escrita [parte da faceta linguística], para fazer alguma coisa com isso, interagir com outros por meio da escrita nas situações em que a escrita é a forma de comunicação [faceta interativa]. E tudo isso dentro de um contexto cultural que tem lá suas ideias sobre a escrita, a utiliza com determinadas funções, exige isso e aquilo das pessoas, que é a terceira faceta [sociocultural].
Essa ideia das facetas começou lá atrás num artigo que publiquei em 1960 mais ou menos, em que já discutia isso. Estávamos numa fase, que vai até os anos 70, 80 em que se discutia o fracasso escolar. Quantos meninos eram reprovados no primeiro ano ou evadiam, saíam da escola porque não aprendiam a ler ou escrever? Toda vez que saía estatística era isso.
Hoje continuamos no mesmo sistema… quantos chegam lá na frente sem aprender a ler? Mas já achava que era mais complexo do que isso. A vantagem que levei foi ter sido formada em letras, e não em pedagogia. A alfabetização sempre foi entendida como um problema de pedagogo. Até hoje ainda há muito disso. E é, mas não só. É também da psicologia, da linguística e de todas as ciências linguísticas.
No próprio curso de pedagogia, ninguém acha importante discutir essas coisas com quem vai alfabetizar. É algo que me tomou anos. Há muita leitura nesse livro, tudo para que eu pudesse entender bem o processo de aprendizado da língua escrita dos pontos de vista da psicologia cognitiva, da linguística, da sociolinguística, enfim, de várias áreas de conhecimento.
E depois tem o fato de os psicólogos do desenvolvimento terem começado a se preocupar com isso há pouco tempo, como os linguistas que começaram nos anos 70, outro dia mesmo. Cada um analisando seu pedaço, daí o nome das facetas. Porque você aprende a codificar e decodificar a língua escrita [parte da faceta linguística], para fazer alguma coisa com isso, interagir com outros por meio da escrita nas situações em que a escrita é a forma de comunicação [faceta interativa]. E tudo isso dentro de um contexto cultural que tem lá suas ideias sobre a escrita, a utiliza com determinadas funções, exige isso e aquilo das pessoas, que é a terceira faceta [sociocultural].
Essa ideia das facetas começou lá atrás num artigo que publiquei em 1960 mais ou menos, em que já discutia isso. Estávamos numa fase, que vai até os anos 70, 80 em que se discutia o fracasso escolar. Quantos meninos eram reprovados no primeiro ano ou evadiam, saíam da escola porque não aprendiam a ler ou escrever? Toda vez que saía estatística era isso.
Hoje continuamos no mesmo sistema… quantos chegam lá na frente sem aprender a ler? Mas já achava que era mais complexo do que isso. A vantagem que levei foi ter sido formada em letras, e não em pedagogia. A alfabetização sempre foi entendida como um problema de pedagogo. Até hoje ainda há muito disso. E é, mas não só. É também da psicologia, da linguística e de todas as ciências linguísticas.
Quais são os maiores entraves para a alfabetização?
Pensando com os pés no chão – linha mestra do livro – é que sempre se pensou a alfabetização em termos de método. Lá em Lagoa Santa [município mineiro em que coordena o Núcleo de Alfabetização e Letramento, que faz formação continuada com as professoras da rede local], cujo processo é uma didatização do que está nesse livro, as pessoas vão nos visitar e a primeira pergunta que fazem é: “que método vocês usam na alfabetização?”. Como se a alfabetização fosse uma questão de método. E sempre foi assim.
O que você tinha de bibliografia na área de alfabetização era a defesa de um ou outro método, disputas, desentendimentos em torno de como ensinar. Mas sem pensar em como ensinar o que e para quem. Quem aprende o quê? Sem pensar que é um objeto linguístico que uma criança em fase de desenvolvimento enfrenta e dele se apropria. A questão é fundamental. Isso explica esse reiterado fracasso em alfabetização, que data de quando houve a democratização do ensino, porque as camadas populares entravam na escola e não aprendiam a ler e escrever. Esse fracasso só mudou de figura. Antes era a reprovação e a evasão.
Temos uma bibliografia estatística bastante grande desse período, sobretudo dos anos 70, que mostrava quantos alunos eram reprovados a cada ano. A taxa de reprovação da alfabetização era sempre alta do 1º para o 2º ano, pois ainda havia essa ideia de que o menino tinha de ser alfabetizado do 1º para o 2º ano. A gente tinha classes de alfabetização, o que expressa o desconhecimento do que é esse processo, achar que você alfabetiza uma criança em um ano.
Depois, quando vieram os ciclos, começou a reprovação no fim do ciclo. Resolveram que não pode reprovar no fim do ciclo, então o menino chega ao 6º ano, 7º ano semialfabetizado. Quer dizer, o fracasso, antes concentrado numa série inicial, atualmente se dilui ao longo do ensino básico. E até hoje está assim por quê? Porque continuamos discutindo método, sem entender o processo, como se se pudesse achar de repente um método que fosse uma varinha de condão, uma receita.
O livro descreve bem as polarizações no campo, desde a pendenga entre sintéticos e analíticos no início do século 20, até a mais recente, entre fônicos e construtivistas, uns sempre negando os outros, ideologizando o olhar.
É uma espécie de Guerra Fria?
Sim, tanto que nos Estados Unidos isso foi chamado de Reading Wars, as Guerras da Leitura (eles chamam a alfabetização de reading), o que ainda hoje se comenta. Era a guerra entre phonics e whole language, na linha do nosso construtivismo, com a concepção de que a criança aprende por si mesma, de que aprender a escrita é a mesma coisa que aprender a língua oral. O que é uma coisa absolutamente sem sentido, pois já se sabe há tempos que a língua oral é inata e a escrita é cultural. Essa ideia é subjacente a esse grupo da whole language e ao nosso construtivismo. E isso não se sustenta mais cientificamente.
Sim, tanto que nos Estados Unidos isso foi chamado de Reading Wars, as Guerras da Leitura (eles chamam a alfabetização de reading), o que ainda hoje se comenta. Era a guerra entre phonics e whole language, na linha do nosso construtivismo, com a concepção de que a criança aprende por si mesma, de que aprender a escrita é a mesma coisa que aprender a língua oral. O que é uma coisa absolutamente sem sentido, pois já se sabe há tempos que a língua oral é inata e a escrita é cultural. Essa ideia é subjacente a esse grupo da whole language e ao nosso construtivismo. E isso não se sustenta mais cientificamente.
Como você interpreta essa disputa?
As pessoas disputam métodos, e não os fundamentos dos métodos, pois é importante vencer a guerra dos métodos, porque você vence social, cultural e comercialmente em uma sociedade. Isso é o que justifica a guerra, essa posição de que é “isso ou aquilo”, quando, na verdade, é isso e aquilo.
No estudo da alfabetização como processo cognitivo num quadro de desenvolvimento e do objeto que é a língua escrita, vê-se que a criança precisa, sim, aprender as relações fonema/grafema. A perspectiva fonológica deixa isso muito claro. Se você escreve registrando o som, claro que a criança tem de perceber o som e compreender que quando se escreve não se escreve a coisa em si, mas o som com que você se refere à coisa. Então, o processo de relação fonema/grafema está implícito, presente, quer queira, quer não.
Está presente no construtivismo, pois se a criança vai descobrindo, se apropriando da língua escrita, de acordo com a terminologia do construtivismo, o que é essa apropriação? É descobrir essa relação fonema/grafema, grafema/fonema. Só que o fônico faz isso de forma sistemática, porque cai num método. E o construtivismo não faz isso de forma sistemática porque resolve sistematizar outras coisas, como o convívio da criança com a escrita etc.
Então é isto e aquilo. Não há como reduzir a complexidade do processo a um método, se você entende método como modo de agir alicerçado em fundamentos teóricos. No caso da alfabetização, fundamentos psicológicos – psicologia do desenvolvimento, cognitiva, no que se refere à criança – e fonologia, psicolinguística, sociolinguística, no que se refere ao objeto.
Pode haver vários métodos que funcionem ao mesmo tempo. Isso me incomodou o tempo todo porque foi no correr do livro que fui vendo o que diria a respeito da questão dos métodos, proposta no título. A ideia primeira era de que não se deve procurar um método, mas vários métodos. Aí comecei a pensar, e esse último capítulo [Métodos de alfabetização: uma resposta à questão] me deu muito trabalho. Desde o início pensei que a conclusão a que eu ia chegar para resolvê-la não era chegar dizendo “é só colocar isso no plural”. Você tem uma forma de orientar a criança para levá-la a relacionar o oral com o escrito; outra forma quando pretende desenvolver o conceito de palavra etc. Cada forma de um jeito. É preciso ter vários métodos para alfabetizar. De forma um pouco mais genérica, cada faceta é um método diferente.
As pessoas disputam métodos, e não os fundamentos dos métodos, pois é importante vencer a guerra dos métodos, porque você vence social, cultural e comercialmente em uma sociedade. Isso é o que justifica a guerra, essa posição de que é “isso ou aquilo”, quando, na verdade, é isso e aquilo.
No estudo da alfabetização como processo cognitivo num quadro de desenvolvimento e do objeto que é a língua escrita, vê-se que a criança precisa, sim, aprender as relações fonema/grafema. A perspectiva fonológica deixa isso muito claro. Se você escreve registrando o som, claro que a criança tem de perceber o som e compreender que quando se escreve não se escreve a coisa em si, mas o som com que você se refere à coisa. Então, o processo de relação fonema/grafema está implícito, presente, quer queira, quer não.
Está presente no construtivismo, pois se a criança vai descobrindo, se apropriando da língua escrita, de acordo com a terminologia do construtivismo, o que é essa apropriação? É descobrir essa relação fonema/grafema, grafema/fonema. Só que o fônico faz isso de forma sistemática, porque cai num método. E o construtivismo não faz isso de forma sistemática porque resolve sistematizar outras coisas, como o convívio da criança com a escrita etc.
Então é isto e aquilo. Não há como reduzir a complexidade do processo a um método, se você entende método como modo de agir alicerçado em fundamentos teóricos. No caso da alfabetização, fundamentos psicológicos – psicologia do desenvolvimento, cognitiva, no que se refere à criança – e fonologia, psicolinguística, sociolinguística, no que se refere ao objeto.
Pode haver vários métodos que funcionem ao mesmo tempo. Isso me incomodou o tempo todo porque foi no correr do livro que fui vendo o que diria a respeito da questão dos métodos, proposta no título. A ideia primeira era de que não se deve procurar um método, mas vários métodos. Aí comecei a pensar, e esse último capítulo [Métodos de alfabetização: uma resposta à questão] me deu muito trabalho. Desde o início pensei que a conclusão a que eu ia chegar para resolvê-la não era chegar dizendo “é só colocar isso no plural”. Você tem uma forma de orientar a criança para levá-la a relacionar o oral com o escrito; outra forma quando pretende desenvolver o conceito de palavra etc. Cada forma de um jeito. É preciso ter vários métodos para alfabetizar. De forma um pouco mais genérica, cada faceta é um método diferente.
Nesse aspecto, é interessante a ideia dos pesquisadores Spiro e DeSchryver, citada no livro, de que o ensino explícito é adequado em áreas do conhecimento bem estruturadas, isto é, aquelas em que é possível delimitar informações, conceitos e processos que o aluno deve aprender.
As alfabetizadoras são muito espertas, porque a maior parte delas, quando você vai pesquisar quais métodos de alfabetização são usados em sala de aula, dizem que misturam vários métodos, usam “métodos ecléticos”. É uma resposta inteligente, pois já perceberam que cada método tem a sua contribuição a dar.
Em alguns casos, você tem um ensino mais direto, explícito. Se quiser, pode deixar na visão construtivista, para a criança adivinhar, descobrir de tanto mexer com a escrita. Mas não é justo com ela. É algo construído culturalmente, que você vai ensinar a ela. Isso não quer dizer que ela tenha de ficar fazendo aqueles exercícios de método fônico, mas deve ter um ensino explícito. Ao mesmo tempo, isso pode ser acompanhado de elementos do construtivismo, como o convívio com material escrito, conhecendo diferentes portadores da escrita e gêneros textuais. Aí, não se trata de ensino explícito, e sim de ensino indireto, com a criança envolvida nesse mundo da escrita. É como se esse objeto “língua escrita” fosse composto de vários subobjetos, cada um com sua peculiaridade, exigindo determinadas habilidades e processos cognitivos da criança, que têm de acompanhar o processo de desenvolvimento dela, sem dar saltos.
E também não pode retroceder, que é o que muitos têm feito quando negam à criança o início da alfabetização na educação infantil. O único jeito de uma pessoa alfabetizar conscientemente, sabendo o que está acontecendo com a criança, que hipóteses ela está fazendo, que interferência fazer em cada momento, é saber que estratégia usar. Essa construção de hipóteses é coisa do construtivismo, só que no construtivismo a criança vai fazendo hipóteses e você vai dando a ela outras experiências para ela desmanchar essa hipótese, substituí-la. Por que não clarear as coisas explicitamente para a criança?
Até porque há crianças que, por diversos motivos, não querem formular hipóteses…
Tem um caso engraçado numa pesquisa de uma orientanda minha, que relata a história de uma menina de uma escola construtivista, onde pediam para ela escrever alguma coisa na atividade de casa. Ela perguntava como escrever para a mãe, que tinha participado da reunião de pais na escola e havia recebido a orientação de responder que ela deveria escrever como achava que era. A menina perguntava e a mãe respondia: “escreve do jeito que você acha que é”. E a menina: “Não, me fala só essa letra, se é essa ou é essa”. E a mãe: “escreve do jeito que você acha que é”. Até que a menina falou: “Acho que isso é um segredo, né?” (risos). É a tal história, o adulto fica escondendo da criança o que você pode dizer para ajudá-la a descobrir com a sua orientação explícita.
Qual a importância da memória no processo de aquisição da linguagem oral e escrita?
Nesse processo inicial de alfabetização é muito forte, porque é um sistema de representação. Há quem chame de re-representação, pois a oralidade já é uma forma de representação.
Este objeto, por exemplo, que é o real: ponho isso numa representação de sons que é “gravador” e depois é preciso pegar essa sequência de sons e colocar numa outra representação que é visível. Ou seja, tenho de passar da oralidade para a visibilidade, pois a língua escrita é a língua tornada visível.
Como se trata de um sistema de representação abstrato, pois não representa a coisa em si, como faz o desenho, a memória é fundamental. No caso do nome da criança, por onde todos começam por ter um sentido para ela, a criança memoriza as letras de seu nome. Quando você quer que ela comece a reconhecer o nome dos colegas, ela memoriza. Isso é que a vai levando, aos poucos, a entender que é um processo de representação.
Que você pode fazer de forma mais fácil e leve para a criança, de forma mais direta. Mas para relacionar letra com som, é só pela memória. Outra coisa mal trabalhada na alfabetização é que colocam um alfabeto lá e dizem “essas são as letras”. Dão inclusive alfabeto móvel para a criança mexer. Mas é difícil para ela criar a ligação entre aquelas linhas e curvas com os sons, confundem muito. Qualquer um que mexe com alfabetização sabe disso, ainda mais letras muito próximas, com pequenas assimetrias, como p e b. Uma diferença de posição muda a própria letra, a correspondência de sons.
Só a memória vai fazer a criança gravar que esse p é diferente desse d, embora tenha havido uma virada, ou que o p é diferente do b, outra pequena virada. É preciso conhecer a psicologia da memória, o que é memória de curta de duração. Tem gente que fala: “Ah, mas esse menino não aprende de jeito nenhum, a gente ensina hoje, na semana que vem ele já esqueceu”. Ora, há uma memória de curta duração que você precisa transformar numa memória de longa duração. Na alfabetização, isso acontece muito.
Há, por parte de uma corrente ligada ao construtivismo uma ojeriza à sílaba? Por quê?
A sílaba é ponto crítico da alfabetização. No próprio construtivismo, enquanto a criança não chega à fase chamada de silábica, não se alfabetiza. O trabalho todo tem de ser feito para ela perceber a sílaba, pois ela não percebe o fonema.Só consegue perceber o fonema quando faz o contraste entre uma sílaba e outra. Isso é outra coisa que revela a falta de fundamento linguístico do método fônico, que acha que você pode ensinar os fonemas.
Nos Estados Unidos, eles usam muito isso. Ainda hoje recebi um livro falando da importância de avaliar se a criança está relacionando a letra com o fonema que ela representa, pedindo, por exemplo, que ela fale vaca separando cada pedacinho. A criança fala sempre va-ca. Eles pedem pedacinho menor. Como eles vão falar o som do v e do c? Quando você põe va-ca e fa-ca, ela percebe a diferença, mas a realidade concreta não está na diferença sonora. Daí a importância da sílaba, é pelo contraste que a criança identifica – no sentido que discuto no livro, de ver que é idem, igual. Quando eu falo fa, fi, há uma identidade no fonema inicial, aí é que ela percebe. Não tem jeito: se não passar pela sílaba não vai.
Mas por que a rejeição?
Reclamam do método silábico. Que é que tem? Qualquer livro de linguística, de fonologia mostra que o elemento básico da corrente fonológica, perceptível, identificável, é a sílaba. Essa rejeição é um dogma. Na alfabetização estamos muito sujeitos a dogmas. Duas coisas que prejudicam são esse dogmatismo e outra, do pessoal do fônico, de buscar solução para a nossa alfabetização em outros países, sobretudo nos Estados Unidos, com ortografia completamente diferente.
Por isso trabalhei um capítulo sobre a questão da ortografia, para que enxerguem como ela influencia o processo de alfabetização. Seria ótimo se pudéssemos imitar os finlandeses, pois na língua deles cada fonema é uma letra, cada letra um fonema, não tem discussão, é uma língua com a ortografia muito transparente.
Como esses dogmas estão prejudicando a educação infantil?
Infelizmente, muita gente acha um pecado mortal mexer com alfabetização na educação infantil, como se a criança não estivesse convivendo com a língua escrita desde praticamente o momento em que nasce.
É preciso respeitar o desenvolvimento da criança. O povo da educação infantil está respeitando o desenvolvimento de uma criança do século 19, não o da criança de hoje, que já nasce imersa num contexto gráfico, da escrita. E é para começar na hora certa.
Por exemplo, a percepção de que a palavra é som deve ser trabalhada na educação infantil, pois a criança está pronta para fazer isso. É uma coisa lúdica, de cantar parlendas etc. O que a educação infantil não tem feito é, quando a criança está falando uma parlenda com rima, escrever para ela essas palavras com terminação igual e apontar isso. Aí, ela já começaria a ver que a letra representa um som, quando isso é igual etc. Enfim, vários procedimentos para a criança já ir fazendo essa relação. Ela pode dar conta disso e pode ser feito de forma lúdica. Ajuda muito a alfabetização, principalmente nessa perspectiva de alfabetização na idade certa.
Se a idade certa for 8 anos, algo arbitrário, não dá tempo se começar aos 6 anos. E a criança está pronta para esse processo antes disso. Há equívoco na compreensão. Acham que deve trabalhar apenas literatura infantil, o contato com o livro, numa linha muito construtivista. Ler para a criança, deixá-la folhear o livro, coisas obviamente muito importantes. Mas, com base nisso, por que já não chamar atenção para o fato de que o que está escrito no livro é o que está sendo falado? É estranho o pessoal achar que o desenvolvimento se faz por etapas estanques, aqui acaba uma coisa e começa outra. Nenhum desenvolvimento é assim, é um processo contínuo, que começa na creche. Em Lagoa Santa, na creche já estamos trabalhando historinha com os meninos, fazendo-os reconhecer figuras e mostrando, por exemplo, a imagem e a palavra do lobo.
A aquisição da consciência metalinguística é a porta de entrada para o pensamento complexo?
É o que está na base da aprendizagem da língua, não só na alfabetização, mas em todo o processo. Para produzir um texto, você tem de ter consciência metalinguística, tem de ser capaz de olhar a língua. Quando escreve um texto, você pode falar o texto. Mas na hora de escrevê-lo há certas convenções, tem de ter consciência sobre a língua para produzi-lo, fazer uma leitura, interpretar. E na alfabetização, para transformar o oral no escrito. O metalinguístico é fundamental.
O livro trata de forma minuciosa a questão da transparência e da opacidade linguística. A opacidade de línguas como o inglês, por exigir maior esforço da criança no processo de identificação das relações fonema/grafema, propicia maior consciência ao aprendiz?
Com certeza, uma ortografia opaca como a do inglês exige muito mais da memória do que uma transparente. Por causa disso, talvez o menino que aprende o inglês desenvolva mais a consciência metalinguística, pois tem sempre de estar fazendo associações. Para ensinar o inglês para crianças, eles usam muito as analogias, morfemas, a consciência morfológica. Que para nós serve quase exclusivamente para a ortografia, para a aprendizagem de regras ortográficas. Para o inglês aprender a ler tem de trabalhar muito com a morfologia da língua, para suprir a opacidade das relações fonema/grafema. Então, por hipótese, acho que deve exigir mais consciência metalinguística deles do que dos nossos. Mas não sei se isso resulta em um benefício para eles.
Depois da alfabetização, para produção de leitura e produção de texto, quanto mais desenvolvida a consciência metalinguística, melhor leitor e melhor produtor de texto será a pessoa. Uma coisa é a pessoa que lê e não vê as entrelinhas, não tira inferências, que são habilidades metalinguísticas. Enfim, são coisas muito complicadas para serem tratadas de um modo ingênuo como tem sido feito.
Quais devem ser os principais beneficiários do livro?
Não foi um livro que escrevi para resolver o problema da professora na sala de aula. Eu gostaria que todos que formam alfabetizadores tivessem esses conhecimentos e fundamentos para que o alfabetizador ou alfabetizadora seja uma pessoa que conhece o processo da criança e conhece o objeto, saiba relacionar uma coisa com outra, saiba o que fazer. É o que chamei de alfabetização com método, e não método de alfabetização. Uma alfabetização baseada em fundamentos que fazem você entender o processo e, portanto, permitem saber como agir, quando ser mais ou menos diretivo; entender o que está acontecendo com a criança quando ela está com dificuldade, o que fazer. Minha intenção, ao fazer tantas leituras e tentar sistematizar isso para mim mesma – e uma vez isso feito, ter a vontade de socializar para quem trabalha com alfabetização –, é que avancemos nesse campo, não fiquemos discutindo se é esse ou aquele método.
Fonte: revistaeducacao.com.br | RUBEM BARROS , 18 DE OUTUBRO DE 2016
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